Quando soube que o artista estava hospedado no mesmo hotel em que ela passava férias, Sylvia correu até a escrivaninha de seu quarto. Com letra de calígrafa e texto formal, pediu em cinco parágrafos um encontro com o ídolo, em nome "dos amantes da arte no Brasil".
Resultado? "Ele me recebeu todo vestido de preto, apenas com um foulard [echarpe] branco. Usava uma bengala com ponta em prata e acariciava uma tartaruga. Antes de eu ir embora, me disse para contar aos amigos brasileiros que eu havia me encontrado com Dalí, o magnífico", recorda -ou melhor, jamais se esquece.
Apesar do destinatário ilustre, essa não foi a única correspondência marcante na vida de Sylvia. "Se eu juntar todas as cartas, é possível montar um livro com a história da minha vida", diz. E os capítulos seriam muitos. Entre eles, os das cartas de amor. Como ficou viúva muito jovem, aos 42, Sylvia passou a viajar pelo mundo. Quando voltava, além de suvenires para a família, trazia um amor na bagagem. Ao lado dos selos das cartas de seus admiradores há carimbos dos Estados Unidos, da França e da Espanha.
Escrever diante de uma bela janela, ao lado de uma xícara de chá fumegante, passar a língua na borda do envelope, selar e depois trazer a carta junto ao peito num suspiro pode parecer cena de filme antigo. Mas não é.
A exemplo de Sylvia, anualmente cerca de 850 milhões de cartas -cartas mesmo, de pessoa física para pessoa física- passam pelos postos dos Correios. Esse número corresponde a 10% do que eles chamam de objetos postais, que são contas, encomendas e malas-diretas enviadas e recebidas no Brasil. De acordo com o consultor da presidência dos Correios, Fausto Weiler, a porcentagem é a mesma há mais de dez anos, mas esses números crescem progressivamente. "Acreditamos que a carta nunca morrerá. A internet é apenas uma maneira a mais de se comunicar", diz.
Outros dados confirmam a tese do consultor. Em 1994, quando a internet começava a se alastrar por aqui, os Correios circulavam 4,6 bilhões de objetos postais. Hoje, esse número dobrou. Ou seja: mesmo com o advento do e-mail, as pessoas não deixaram de postar -a correspondência comercial, claro, mas também a pessoal.
Presença humana
Para o professor de literatura brasileira da faculdade de filosofia e letras da USP Marcos Antonio Moraes, carregar uma carta consigo é o mesmo que levar um pedaço de alguém querido no bolso. "O papel fica impregnado da presença humana, deixamos partes de nossas vidas entre as pautas de uma carta", acredita.
O mesmo diria o engenheiro Marcos Augustinas, 39, que trabalha como diretor estratégico de uma agência que faz eventos para Cartier e Louis Vuitton. Uma das cartas que a mãe lhe enviou em 1996, durante o período em que estudava na região da Capadócia, na Turquia, é guardada por ele como jóia de família. "Foi nessa troca que consegui expor meus sentimentos e resolvemos as diferenças de uma vida", diz. Ele conta que é possível perceber pelo tipo de letra quando ela estava tensa ou feliz.
Mas o costume de escrever longas cartas à mão não surgiu ali. Desde os dez anos ele envia e recebe cartas de amigos e familiares. Marcos nasceu em Guaíra, no Paraná. Ainda menino se mudou com a família para uma fazenda próxima à ilha do Bananal, antes da criação do Estado de Tocantins. Para estudar, teve de morar em Araguaina, cidade que na época pertencia à Goiás, e a única forma de comunicação com os pais era por carta.
Hoje ele trabalha diariamente de frente para o computador. Mas faz questão de se sentar nos momentos de folga para redigir extensas e calorosas cartas para os amigos que deixou em Londres, Los Angeles e Paris.
O cenário que o inspira é a sala de seu apartamento na avenida Nove de Julho, diante de uma ampla janela. "Todo ano faço uma boa limpeza nos armários e jogo fora papéis e objetos, mas de forma nenhuma consigo me desfazer das mais de 2.000 cartas que acumulei ao longo da vida."
Papéis de carta: extintos
Talvez as colegas de Thainá Simões de Silva, 15, não saibam o significado da palavra missiva e nem que, na maioria das vezes, as pessoas que enviam cartas esperam receber respostas. Mas isso não desanima a estudante carioca. "Não quero deixar o hábito morrer, por isso chego a ligar para lembrá-las de me responder."
Há dois anos em São Paulo, as amigas e parentes que ficaram em Volta Redonda (RJ) são seus destinatários prediletos. "Parece que as meninas daqui não têm esse costume", diz, indignada.
Diante de um monitor LCD de 17 polegadas, depois que desliga o MSN (programa de mensagens instantâneas) ela enfeita as folhas do fichário com adesivos e carimbos -já que os românticos papéis de carta ficaram aprisionados nos anos 80 e se tornaram objetos em extinção nas papelarias atuais- e começa a redigir a cartinha do dia. "As meninas dizem que não têm tempo de escrever, mas quem tem
Thainá guarda tudo em um fichário organizado com o nome das amigas em ordem alfabética. Ela diz que sente como se estivesse recebendo "um carinho" quando chega uma carta, por isso não tem coragem de jogar nem os envelopes fora.
Resposta na caixinha
(não a de entrada)
Há dez anos, a advogada Eny Lopes da Silva, 66, resgatou uma amizade por correspondência. O motivo de sua primeira carta para o professor Benedito Ortiz, 91, foram ações de uma companhia telefônica. Mas não pense que o assunto era separação de bens.
Conterrâneos de Dois Córregos (288 km a noroeste de SP), os dois eram vizinhos, além de professor e aluna. Naquela época, o pai de Eny comprou o telefone de Benedito e, tempos depois, quando recebeu a notícia de que os primeiros donos das linhas tinham direito às ações do companhia, ela resolveu escrever ao antigo professor para contar a boa-nova.
Para surpresa da aluna, que jamais se esqueceu da letra do professor no quadro-negro, a carta foi respondida com entusiasmo -porém datilografada.
"Mandei outra perguntando se ele poderia escrever à mão, porque eu me lembrava de como era bonito o desenho da letra dele e de suas severas lições de gramática. Pedi também que ele não lesse minhas linhas com correção, mas com o coração", conta.
A partir daquela carta, eles nunca mais deixaram de se corresponder.
Ela diz que o encontro epistolar com Benedito a fez reviver sentimentos que pensava ter esquecido. "O ritual de levar a carta aos Correios e olhar diariamente a caixinha na esperança de encontrar a resposta é uma ansiedade deliciosa.
No que depender da atriz Mel Mariá Simão Longhi, 21, Be pode ficar tranqüila. Relíquia ou não, o hábito de escrever, por ela, resistirá por gerações. "As pessoas falam da rapidez e da praticidade do MSN, mas, na verdade, está todo mundo se comunicando menos. Somos 'passadores de recados'. Na carta, dá para sentir o outro próximo, pois sei que só aquela pessoa tem aquela letra", diz.
Como a maioria dos missivistas, Mel não consegue se desvencilhar de seu acervo. "Já tentei jogar fora as que me fazem mal, mas acho que até elas são parte da minha história."
Não é com essa deferência, no entanto, que costumamos tratar esses documentos da escrita, diz o professor Marco Antônio Moraes. "O Brasil ainda não dá a devida importância ao estudo das cartas", afirma. Se resolvermos prestar atenção a esse vasto material -seja aquele da nossa própria adolescência, para quem tem mais de 30 anos, ou ao de nossos antecessores, objeto para estudo não faltará. Basta lembrar que a história do país começou com a carta de Pero Vaz de Caminha, que nunca soube o que é MSN.